Há uns sessenta dias - um pouco
mais ou um pouco menos - a pandemia, então só uma epidemia, não é mais realidade
e assunto só da China, mas do mundo e também do Brasil. Com isso, a nossa vida
pessoal sofreu uma reviravolta, com profundos reflexos na organização da
sociedade, sobre a natureza e que marcará a história. À medida que os fatos acontecem,
ocorre uma desenfreada busca de explicações e soluções necessárias para a
sobrevivência, para o convívio humano, para a saúde da terra e os fins da
história. No entanto, temos mais dúvidas e perguntas do que certezas e
respostas.
A dilaceração provocada pelos
fatos, que fere o corpo, a psique e o espírito, e a limitação das respostas científicas,
que retardam medidas técnicas, nos levam a criar uma nebulosa realidade, onde
somos, ao mesmo tempo, sujeitos e objetos, e vivemos “tateando no escuro”,
caminhando quase “a esmo”, no ritmo do acerto e do erro, pois sem clareza no
horizonte não há objetividade na ação. Não há culpados, ao menos por enquanto,
mas podemos ser cúmplices por não fazermos bem o que podemos e, por isso
mesmo, devemos fazer, cada qual no seu “quadrado”, se bem que a crise nos
mostra que os quadrados são interligados e interdependentes.
Não sei se poderia ou deveria ser
diferente, mas algumas decisões, neste tempo pandêmico, tomadas nos
escritórios, com diálogo seletivo, são sugestivas ao decidirem sobre e para outros,
sem o devido conhecimento de quem são e como vivem estes “outros”. A reclusão
imposta, restringindo o convívio social, por exemplo, veio mostrar alguns
“invisíveis”, os que se encontram em situação de rua, os que vivem em barracos,
em casas precárias, ou em residências demasiado pequenas. Será que isto
fortalecerá o desenvolvimento de uma política habitacional diferente e mais
adequada?
De uma hora para outra, a
sociedade ficou surpresa, ao constatar forçadamente, que um número
significativo de pessoas não possui condições normais de higienização,
necessária para evitar a contaminação com o covid-19, pois falta água,
banheiro, pia, chuveiro, bacia e sabão. E que o álcool em gel, para muitos, é
um luxo, inacessível. E se a fome já era existente ou a alimentação era inadequada,
está sendo a sociedade civil a garantir “o pão de cada dia” ou a amenizar a
dor de não ter o que comer para muitos que deveriam ser assistidos de modo
permanente pelo Estado, enquanto se encontram em situação de vulnerabilidade
social. Depois da pandemia, haverá uma política de “renda mínima”, mais
abrangente, que atinja a todos os que precisam?
Outro dado interessante é a
definição de “atividades essenciais” como princípio para determinar o que pode
e o que não deve “funcionar” nas cidades. Em sociedades profundamente desiguais não é fácil, e muito pouco provável, encontrar “uma média” razoável para
determinar o que seja ou não essencial para os cidadãos. Alguns setores
significativos da sociedade não são sequer ouvidos ou comunicados adequadamente através das suas organizações representativas das decisões tomadas e a serem
observadas. Em outras palavras, não há um trato das pessoas como cidadãs, mas
são abordadas como massa a ser conduzida, silenciosamente, com as ameaças da
fiscalização e/ou punição, onipresentes para uns e quase ou inexistentes para
outros.
“Queira Deus eu esteja enganado”,
mas passaremos por um bom tempo sujeitos a trovoadas, rajadas de vento e
tempestades, mas nos encontramos no mesmo barco, embora alguns em posição singular.
O timoneiro não pode agir sozinho, nem só ouvir “a hierarquia do comando”. Quem escuta mais tem chances de errar menos,
pois nem só de “ciência”, qual ciência (?), vive a humanidade. Diante do risco
de tantas “imposições”, não é mau pensar nas “liberdades individuais”, se não
comprometem a vida dos outros.
+ Tomé Ferreira da Silva
Bispo Diocesano de São José do
Rio Preto, SP